ÚLTIMAS NOTÍCIAS

Acompanhe todos os destaques do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

Festival de Brasília promove noite identitária e abre sua mostra competitiva com “Morte e Vida Madalena” e os curtas “Logos” e “Safo”

A competição de longas-metragens do Festival de Brasília começou em tom de comédia com “Morte e Vida Madalena”, do cearense Guto Parente. E com dois curtas de grande qualidade — “Logos”, da gaúcha Britney Federline, e “Safo”, da paulistana Rosane Urbes.

Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília (DF)

A noite configurou-se como espaço do cinema queer. Mas, já no palco, Britney, mulher trans, avisou que viera ao festival para discutir seu filme, sua construção técnico-artística. Não o “ser trans”. Não as questões do cinema LGBTQIA+.

No debate, na manhã desse domingo, 14 de setembro, a cineasta avançou, com elegância e contundência, sobre a opção da curadoria de programar noite temática. Disse, com serenidade reflexiva: “os três filmes que assistimos (ontem, sábado) falam de diversidade. Eu, porém, quero habitar outros lugares. Por isso, prefiro que meu filme seja visto fora do nicho”.

Rosane Urbes, que conquistou o prêmio de melhor curta-metragem no Festival Internacional de Annecy, a Meca do cinema de animação, também se posicionou, durante o debate, ao deixar claro que “Safo” (sobre a poeta grega que viveu na Ilha de Lesbos) “é um filme sobre uma artista que nos legou a doçura dos fragmentos de sua criação”. E contou que futuros espectadores costumam perguntar a ela: “Você vai falar do lesbianismo de Safo?”

— Respondo: “não!”. E acrescento: “a sexualidade de Homero é lembrada quando suas narrativas são recriadas no cinema?” Consumi anos de trabalho para tentar tirar do apagamento uma grande poeta. Restaram apenas 200 fragmentos da criação literária dela, encontrados nas areias de deserto egípcio. Então, o que me interessa no meu curta (uma animação que condensa 10 mil sofisticados desenhos e pinturas em apenas 12 minutos) é mostrar a criatividade da poeta, não apresentá-la como ícone do lesbianismo”.

Noá Banoba, atriz-protagonista de “Morte e Vida Madalena”, também avisou — no palco do Cine Brasília, depois de apresentar-se como mulher trans — que esperava a todos interessados no debate do dia seguinte. Mas para “discutir o processo criativo” de sua personagem e do filme dirigido por Guto Parente. Foi o que aconteceu no auditório do Hotel Ramada. Ninguém dirigiu a ela e aos demais integrantes da equipe artística e técnica de “Morte e Vida Madalena” perguntas ligadas a questões identitárias.

Os três realizadores dos primeiros concorrentes ao Troféu Candango são profissionais experientes. A gaúcha Britney, de 41 anos, começou no cinema como “caracterizadora” (atividade que define a aparência de uma personagem, utilizando maquiagem, penteados etc.). Função que desempenhou em “Saneamento Básico, o Filme”, de seu conterrâneo Jorge Furtado. Destacou-se de tal forma que dali em diante seria requisitada para diversas funções no audiovisual. Tornou-se a primeira diretora trans de uma telenovela da Globo (foi uma das diretoras de “Travessia”).

Em “Logos”, o curta selecionado pelo Festival de Brasília, ela narra história autobiográfica. Algum tempo depois de passar 14 dias entubada num hospital, pois vítima do Coronavírus, ela resolveu se expor num filme.

— Eu quis me expor com toda honestidade, abrir minha vida, mostrar meu corpo e minhas relações. Sou uma travesti que iniciou sua transição em 2005. Uma transição que se fez acompanhar também por minha passagem para a prática do audiovisual. Travestis, amigas minhas, me viam como ‘um viadinho’, pois eu não colocara peito, nem fazia programa. Nunca tive talento para a prostituição, embora tenha imenso respeito pelas travestis que ganham a vida nesse ofício. Minha mãe, inclusive, queria que eu retirasse os pelos com laser e colocasse peitos. Até 2021, eu era a única mulher trans a aparecer em sets de novela como diretora. Ainda bem que estamos em processo de significativas mudanças.

Britney, que participou do debate ao lado de sua atriz Isabelle Nasser (elas se conheceram na novela “Travessia”), prepara agora seu primeiro longa-metragem, que terá por título “Família”. Isabelle, modelo e mestra em Filosofia, também prepara sua estreia como diretora de longa-metragem.

Rosane Urbes, de posse do importante Prêmio Cristal Alexeieff-Parker, conquistado em Annecy, assiste ao coroamento de longo trabalho com o cinema de animação. Desenhista inspirada e talentosa, ela foi escolhida, anos atrás (depois do triunfo do hollywoodiano “O Rei Leão” nas bilheterias planetárias), a trabalhar em equipes norte-americanas. Começou com “Mulan”, prosseguiu com “Tarzan” e “Lilo & Stitch”. Era bem remunerada, mas veio o desejo de regressar ao Brasil e à animação mais experimental e arriscada. Dirigiu o curta “Guida”, que conquistou múltiplos prêmios. E somou forças no intento de transformar “Safo” em realidade. O curta lhe tomou oito anos de trabalho. O resultado é de beleza arrebatadora. Fez, com louvores, jus ao Prêmio Cristal francês.

Guto Parente, de 42 anos, tem 17 longas-metragens no currículo. Parte deles realizada no Coletivo Alumbramento, que renovou o cinema cearense duas décadas atrás. Praticante do cinema de baixo orçamento, ele vem de experiência muito festejada — o denso “Estranho Caminho”, premiado no Festival Tribeca, de Nova York.

Depois de tantos longas experimentais, muitos deles em diálogo com o horror, Guto chega a seu projeto mais acessível. Afinal, “Morte e Vida Madalena” tem tudo para dialogar com o público. Uma personagem feminina forte (a Madá, produtora de cinema, grávida de oito meses), uma trama divertida (a rodagem de um filme de ficção científica em cenário “barroco-futurista”) e trilha musical das mais envolventes.

O público, que lotou o Cine Brasília,  divertiu-se com a história de Madalena (Noá Bonoba), que já na sequência de abertura pranteia o pai, interpretado por Carlos Francisco. O velório do produtor de cinema acontece no tradicional Cine-Teatro São Luiz, em Fortaleza. E acaba em confusão, pois um dos presentes, também cineasta (Marcus Curvelo), por descuido, pisará em dispositivo capaz de espargir gelo seco sobre os participantes do velório.

Sem o pai, a produtora grávida terá que assumir o lugar dele. Ela comandará, nas falésias do balneário de Lagoinhas, as filmagens da ficção científica de baixíssimo orçamento. Enfrentará verdadeira via crucis de dificuldades, sendo a principal delas a falta de recursos financeiros.

No debate do filme, a diretora de arte Tais Augusto contou que recebeu do diretor (seu cunhado na vida real) a incumbência de criar ambientação “barroco futurista” para o filme dentro do filme. Ao que sua irmã, a produtora Ticiana Augusto Lima, companheira e sócia de Guto Parente na Tardo Filmes, sugeriu que filmassem nas falésias de Lagoinha, onde o sogro do cineasta tem uma casa de veraneio.

As areias de Lagoinha e o colorido de suas falésias serviram de matéria-prima. Toda a parte referente ao filme dentro do filme foi feita lá. A atriz Noá Bonoba contou que os perrengues enfrentados por Ticiana lhe serviram de inspiração na construção da produtora Madalena. E mais: “fez a personagem com a devida seriedade”.

— Madá é uma mulher que cultiva seu ofício de produtora, guarda as cinzas do pai e, em seguida, tenta resolver a sequência de problemas trazidos pelo filme. Eu a construo como uma personagem dramática. Embora esteja sempre à beira de um ataque de nervos, ela se pauta pela contenção, vai empurrando os problemas com a barriga, mas disposta a tudo fazer para resolvê-los.

Sobre o tom do humor de “Morte e Vida Madalena”, Guto Parente ponderou:

— A comédia cearense é conhecida por apostar no humor debochado, em trejeitos físicos e no sotaque nordestino. Fazem o que chamamos ‘mungango’. Já no nosso filme apostamos na autoironia, no absurdo dos diálogos. A Madá é séria. Ela não quer ser engraçada.

Entre os cineasta que praticam a comédia, Guto destacou uma de suas fontes de diálogo: o finlandês Aki Kaurismaki.

A trama de “Morte e Vida Madalena” é banhada em música. A criação original assinada pelo compositor Paulo Gama, em diálogo inclusive com as sonoridades do western spaghetti. E canções, que vão da dramática “Juízo Final”, na voz do próprio Nelson Cavaquinho, até baladas românticas (caso de “Porto Solidão”, de Jessé).

O filme de Guto Parente está mais para a alegria que para o desespero de Nelson Cavaquinho. Mesmo que a narrativa comece num triste velório, teremos momentos muito divertidos. E neles a música desempenhará papel-chave. Seja em sacudido forró, seja na pontuação irônica evocada por sonoridades à moda de Ennio Moriconi, artista italiano que emprestou sua glória ao bastardo western spaghetti.

A sorte está lançada. Tudo leva a crer que a comédia metalinguística de Guto Parente deverá conseguir bom diálogo com o público. O cineasta externou sua satisfação com a resposta do público brasiliense e contou que o mesmo se passou na França, no FID Marseille, onde foi exibido em três sessões, todas cheias. “Os espectadores franceses riram muito”.

O Festival de Cinema de Brasília celebra o melhor do audiovisual brasileiro, reunindo talentos, histórias e olhares que inspiram e transformam o público.

plugins premium WordPress