Brasília/DF, 10 de dezembro de 2024
A 4ª Conferência Audiovisual, realizada durante a 57ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, de 5 a 7 de dezembro, reuniu uma centena de profissionais, parlamentares, gestores e pesquisadores. O evento expressou profunda preocupação e insatisfação com os rumos da política cinematográfica e audiovisual brasileira, alertando para seus impactos na soberania nacional. No contexto do cinema, soberania significa mais do que produzir imagens: é sobre o Brasil afirmar-se como criador de suas próprias narrativas, com uma estratégia clara de desenvolvimento econômico, social e de inserção global, garantindo que a indústria cinematográfica ocupe uma posição de protagonismo, e não subalterna aos conglomerados estrangeiros que atuam no país. .
Se nossa produção tem batido recordes de filmes lançados a cada ano, o fosso que separa essa produção da população brasileira vem aumentando por razões diversas que merecem discussão: (i) a necessidade urgente de regulação do streaming; (ii) o tratamento do cinema como indústria fomentando de forma estratégica polos vocacionados nascentes, crescentes e consolidados do país e; (iii) uma visão sistêmica sobre a atividade, que englobe criação, produção, distribuição, exibição unindo todos elos da cadeia de valor de forma integrada e potente. Esses três grandes temas foram apontados como centrais e urgentes para criar as condições necessárias para que os filmes brasileiros alcancem uma trajetória digna no mercado interno.
Portanto, é imperativo que o governo federal não apenas demonstre compreensão, mas também exerça uma liderança decisiva e faça gestos inequívocos que reconheçam e valorizem a dimensão econômica, industrial e simbólica do cinema e do audiovisual. O setor está pronto e unificado, e, após dois anos da eleição do presidente Lula, torna-se urgente que o governo federal priorize e dedique a atenção necessária ao tema, mobilizando esforços para reposicionar o cinema como uma pauta estratégica de Estado. Nesse contexto, destacamos as seguintes pautas prioritárias:
Por uma regulação do streaming como prioridade nacional
A regulação do mercado de streaming é uma questão urgente e estratégica para o Brasil, que deve ser tratada como prioridade absoluta pelo governo federal. A demora em avançar nessa pauta tem gerado um crescente ressentimento entre os agentes do setor audiovisual, que aguardam medidas concretas para fortalecer a indústria nacional.
O Brasil, como segundo maior mercado de streaming do mundo, enfrenta uma ameaça à soberania do audiovisual e à competitividade de suas empresas e criadores independentes devido à ausência de um marco regulatório robusto. Essa lacuna desorganiza o mercado, fragiliza a cadeia de valor e deixa o país vulnerável à atuação das big techs, que frequentemente operam sem recolher os tributos relacionados a sua operação em território nacional. Por isso, é imprescindível que a regulamentação seja aprovada já no primeiro trimestre de 2025.
O projeto relatado pelo deputado André Figueiredo apresenta uma base sólida que pode ser aprimorada, especialmente à luz das recomendações presentes na Moção do Conselho Superior de Cinema[1] (CSC). Este documento aponta caminhos para uma regulação que promova equilíbrio entre os interesses dos agentes econômicos e a valorização do conteúdo nacional.
Mais do que uma pauta técnica, a regulação do streaming deve ser vista como uma oportunidade histórica de fortalecer o cinema e o audiovisual brasileiro, assegurando condições justas de mercado e ampliando o acesso do público a produções independentes e diversificadas. Trata-se de um consenso: a implementação de uma política que traga alíquotas justas, incentivos à produção nacional e mecanismos de visibilidade para o conteúdo brasileiro será benéfica tanto para o mercado quanto para a sociedade.
A liderança governamental é fundamental para garantir essa conquista, principalmente junto ao congresso nacional. Cabe ao governo federal articular de forma transparente e eficaz o diálogo entre os diferentes setores envolvidos, centralizando esforços para consolidar um marco regulatório moderno e justo. O tempo para agir é agora!
Ausência de uma política de desenvolvimento industrial
O cinema brasileiro enfrenta uma contradição alarmante: enquanto os esforços de fomento aumentam o número de produções, a falta de uma estratégia industrial sólida e orientada para resultados compromete o impacto econômico e social dessas obras. A dependência quase exclusiva de editais como principal política audiovisual não apenas se mostra insuficiente, mas expõe uma visão limitada e arriscada. É ilusório acreditar que o recente aumento de recursos descentralizados, como os destinados pela Lei Paulo Gustavo e outros editais, será suficiente para ampliar o alcance e o impacto socioeconômico do audiovisual brasileiro. Essa fragilidade ficou evidente no desempenho das obras nacionais nas salas de cinema, que em 2023 alcançaram apenas 3% de participação no mercado.
É a indústria que gera divisas, inovação, emprego e renda. É a indústria que tem o poder de articular investimentos em diversos setores, criando um ecossistema que beneficia desde os criadores até a sociedade como um todo. Urge a necessidade de um plano industrial para o audiovisual e que seja praticado para impulsionar a capacidade estratégica do setor de alavancar o desenvolvimento nacional fomentando polos nascentes e crescentes, sem perder de vista polos audiovisuais já consolidados.
Sem uma estratégia integrada, o resultado é claro: precarização. A ausência de uma política industrial coerente empurra trabalhadores para a informalidade, fragiliza empresas, impede a inovação e deixa o Brasil dependente de produções estrangeiras que ocupam nossos mercados e nossos imaginários.
O governo precisa mobilizar todas as suas áreas — cultura, economia, educação, indústria e tecnologia — para assumir a responsabilidade de proteger e impulsionar a indústria audiovisual nacional. Essa indústria deve englobar todo o diversificado ecossistema do audiovisual brasileiro, promovendo o setor de games, TV, streaming, salas de exibição, festivais e todas as telas e formatos de conteúdo. Construir um setor forte exige a formulação de políticas que abranjam desde a formação técnica e artística até estratégias robustas de exportação do nosso conteúdo, projetando o Brasil como um protagonista global em um mercado audiovisual dominado por gigantes internacionais.
A inércia nesse campo é um atentado à soberania brasileira. O cinema e o audiovisual são ferramentas poderosas de identidade e projeção nacional, mas sem uma indústria que os sustente, permaneceremos vulneráveis. O momento exige ação imediata e liderança decidida. O cinema brasileiro não pode mais esperar.
Políticas para a difusão e exibição e o desafio das telas para o audiovisual brasileiro
É nítido o crescente aumento na produção audiovisual brasileira. Os investimentos públicos centrados quase que exclusivamente na produção e, mais recentemente, desatrelados de estratégias de distribuição e exibição, trouxe à tona antigos problemas como os limites do parque exibidor, a necessidade de valorização dos Canais Brasileiros e Super Brasileiros de Espaço Qualificado, a falta de fomento aos festivais e mostras nacionais e maiores e melhores investimentos para a distribuição e promoção. Portanto, não há desenvolvimento possível sem medidas práticas e urgentes para a ampliação e sustentação de um sistema exibidor brasileiro.
Mesmo em grandes cidades, com muitas salas de cinema, há comunidades, de grande agrupamento populacional, sem cinemas. Mais de 92% dos municípios brasileiros não possuem um complexo de cinema. Ao considerar o universo de municípios com menos de cem mil habitantes, o número é mais alarmante, nem 3,50% tem salas de cinema. E, neste contexto, é fundamental compreender que a sala de cinema representa mais do que um canal de exibição, é também uma vivência social, um ponto de encontro, uma memória, parte da formação humana e da experiência coletiva.
É imperativo ampliar o parque exibidor, para que isto aconteça, é necessário criar políticas públicas para ampliar a quantidade de salas de cinema, especialmente em regiões periféricas e no interior do país, promovendo arranjos institucionais que integrem governos, universidades e associações privadas na gestão de salas de cinema.
Retomar mecanismos de incentivo (como o Prêmio Adicional de Renda) é tão importante quanto criar novos modelos de sustentabilidade e manutenção de espaços de exibição. Da mesma forma, o FSA deverá voltar a fomentar a infraestrutura de exibição, com recursos não reembolsáveis para ações de formação de público e difusão de conteúdos nacionais. Bem como ampliar as linhas de crédito adequadas à realidade do setor de exibição comercial com contrapartida em projetos de formação de público e exibição de obras brasileiras.
Complementando todos os elos do sistema exibidor e tão fundamental como os demais, necessita-se retomar as linhas do FSA que possam garantir a parceria dos CABEQs e SuperCABEQs com os produtores, fomentando o mercado de licenças e contribuindo para a difusão das produções audiovisuais brasileiras independentes de todo o país.
O futuro do cinema e do audiovisual brasileiro depende de ações corajosas e estratégicas, que transcendam o discurso e se materializem em políticas públicas robustas e integradas. O momento exige que o governo federal assuma seu papel de liderança, colocando o audiovisual no centro de uma agenda nacional de reindustrialização e fortalecimento cultural. A regulação do streaming, o desenvolvimento industrial e a ampliação do sistema exibidor não são demandas isoladas, mas partes de um projeto maior de soberania, identidade e progresso. Unidos, os agentes do setor reafirmam seu compromisso em trabalhar pelo fortalecimento do audiovisual brasileiro, esperando que o governo responda à altura da urgência e importância deste chamado.